sexta-feira, 9 de agosto de 2013

A verdade nua (e eventualmente crua)


Adolescência, moda e identidade da mulher no contexto moderno
Por Ariadne Selene, Marília Ferreira e Edmar Borges


Se tem uma coisa que ninguém gosta, é de uma verdade dolorosa. Ela afeta nosso bem-estar, nosso humor e nossa qualidade de vida. Brinca com nossas amizades, dança no seio de nossa família e, acima de tudo, nos revela o que preferíamos ignorar. Constata-se, porém, uma verdade arrebatadora e expressiva no contexto social da nossa era: muitas adolescentes estão a um passo da bestialidade cultural e política, justamente quando se acreditava que os jovens estavam tão próximos do pensamento crítico.
Na geração do consumo, onde imperam os deuses Pressa e Extravagância, mas também onde ganham força a tecnologia e os debates sociais, o papel da moda se mostra cada vez mais edificante na construção da identidade da mulher. Capitalismo e feminismo se encontram em vertentes distintas, mas, ao mesmo tempo, interligadas. O mundo fashion, graças à pluralidade dos novos tempos, tende a se dinamizar. A coleção “Corpo Cru”, por exemplo, de Ronaldo Fraga, coloca em cheque o uso do corpo feminino, suas causas e suas intenções quando substitui modelos reais por um mecanismo de roldanas. Mas será que as adolescentes de hoje, futuras agentes sociais primárias, conseguem reconhecer a moda como elemento constituinte de suas próprias identidades? Ou elas a enxergam apenas como cores de esmalte e saltos Dior?


(Roldanas utilizadas no lugar de modelos reais – “Corpo Cru”, de Ronaldo Fraga. 2002)
 
O legado da moda e a construção do corpo da mulher
Uma análise das edições da revista Vogue entre os anos de 60 e 90 indicou uma transformação significativa na abordagem da moda quando aplicada na vida cotidiana das leitoras. Páginas que costumavam estar recheadas de receitas gastronômicas passaram a estampar imagens de mulheres poderosas e elegantes, o que gradualmente elevou o papel da mulher na sociedade a um nível de relevância expressivo – requinte tornou-se sinônimo de inteligência e capacidade de comando. Outrora, elas eram obrigadas a cuidar dos filhos e a acompanhar o marido como sinal de “respeito” (vulgo submissão), mas então se libertaram dos paradigmas sociais que o século XX prometeu quebrar e viraram a mesa. Os decotes, as saias, os cigarros, os chapéus – cada peça que usavam representava uma parcela de sua autonomia, cada vez mais motivada pelas revistas de moda, além de coincidir com várias conquistas feministas por todo o mundo. Além de ajudá-las com o bom gosto, portanto, as revistas tiveram papel decisivo no incentivo á queda de tabus e ao debate de conflitos sociais da época, muitos persistentes até hoje (como violência doméstica, por exemplo, cuja existência a elegância não é capaz de extinguir, ainda que exaustivamente exposta na mulher).
O que se viu, então, foi o surgimento de certa sensibilidade do mundo fashion para com os problemas enfrentados pelas mulheres diariamente. Subjugadas pela casta, ganharam valor com a construção de uma nova identidade e passaram a pensar nos seus conflitos e nas suas realidades de forma crítica, sem subordinação, mas com a aceitação de um papel novo – o da mulher capaz, sensual e moderna.


 (Edições da Vogue de, respectivamente, 1944, 1966 e 2008)
Com a propagação da imagem feminina, no entanto, a liberdade deu uma escorregada. Os corpos poderosos e sensuais que pretendiam nutrir de autoestima as mulheres passou a oprimi-las, e aquelas que não se encaixavam no padrão das modelos sentiam-se aquém novamente. Sempre aquém de algo. O corpo da mulher tornou-se imagem de exposição e um elemento de uso comum.


O contexto da bestialidade
Muitas pesquisas mostram que os jovens têm lido menos, sejam romances literários ou jornais do dia-a-dia. Eis aí uma verdade suficientemente aterradora, pois a falta de leitura e informação acarreta na formação de uma juventude sem senso crítico, argumentos e opinião. Pessoas deslocadas do contexto social, político e econômico do mundo, ou simplesmente de sua nação, não são munidas de bagagem para alterar a realidade insatisfatória ou apenas assimilá-la, o que gera uma população acomodada e, constantemente, ignorante.
Mulheres de todo o mundo levaram quase um século inteiro para chegaram onde estão hoje, e ainda falta muito. Imagine todo o trabalho que elas tiveram, todas as suas diretrizes, suas lutas, suas defesas e, principalmente, seus meios para conquistarem espaço na sociedade, ao menos um espaço digno de respeito. Nomes como Olympe de Gouges (revolucionária feminista francesa) e Anne Frank (judia vítima do holocausto nazista de Hitler) marcaram a história como símbolo da força da mulher, desde a renomada escritora, como no caso de Olympe, até a mais jovem, como a menina Anne. E estamos falando de tempos onde tudo era muito diferente. As mulheres que batalhavam pela igualdade de direitos e pela construção de uma identidade feminina sólida e respeitada não viviam na era da informação, como as de hoje vivem (e muitas se utilizam disso a seu favor).
No entanto, quando o acesso à comunicação se tornaria uma dádiva, bestializou as jovens da modernidade e as trancafiou em redomas de comodidade capitalista e cultural que revelam um quadro assustador do país: grande parte das garotas entre 12 e 17 anos não são capazes de assimilar os conflitos sociais ao redor delas nem de reconhecer a contribuição da moda para a edificação de uma identidade justa da mulher.


O que acontece?
Foi conduzida durante a semana uma apuração sobre o pensamento crítico das adolescentes e os veículos e produtos que elas eventualmente consomem. Ao visualizarem a coleção “Corpo Cru” as jovens apresentaram, na maioria das vezes, reações inesperadas: julgaram a roupa e deixaram completamente de lado o caráter metafórico do desfile, propositalmente criado por Ronaldo Fraga como uma forma de criticar o uso do corpo feminino, sempre subjugado pela roupa. Elas se atentaram aos detalhes das peças e, especialmente, a responder uma pergunta que não foi feita – “você usaria essa roupa?”. O que estava sendo debatido não era a possibilidade de uso das vestes, e sim o caráter político, social e cultural impregnado na forma como foram exibidas, em máquinas no lugar de corpos verdadeiros. Mas as entrevistadas não notaram que esse caráter existia.
  (Corpo Cru, 2002)
E isso não é culpa delas, apenas. Somos o que consumimos, e todas as entrevistadas consumiam os mesmos produtos da mídia. Revistas e portais da internet destinados a meninas adolescentes são campeões do interesse delas. As páginas virtuais da Capricho, da TodaTeen e da Atrevida são suas prediletas. Sabendo disso, fica muito mais fácil entender porque elas estão tão distantes do engajamento sério e da compreensão da moda como um elemento muito mais expressivo e artístico do que mero vestuário. Em todas as páginas citadas, o mundo fashion se restringe absolutamente a aparências e padrões, onde celebridades (geralmente internacionais) são julgadas de acordo com o que vestem, e a abordagem de identidade feminina e jovem se mostra besta e superficial. Tabus como virgindade e submissão amorosa são discutidos, uma característica positiva dos tempos modernos, mas outros permanecem intactos, como o de que a garota deve se arrumar e se embelezar sempre que for sair. Existem grandes contradições.
Além disso, as fotografias expostas nesses sites são repletas de meninas magras e bonitas, possivelmente inspiradas nas artistas norte-americanas da cultura pop, e sexo, apesar de ser um assunto livre e bem conduzido, é debatido com futilidade, como quando respondem à pergunta “sexo oral é sexo?”. É claro que esses elementos vêm para alimentar o anseio das adolescentes, que realmente têm muitas dúvidas sobre sexo, mas o que se vê é um local onde poderia existir um fórum de questões mais aprofundadas, onde suas raízes históricas fossem apresentadas, e, no entanto, há apenas uma lista de perguntas com respostas enfeitadas e superficiais.
Essa predominância de temas e conteúdos facilmente interpretados ameaça a capacidade das adolescentes de percepção da subjetividade. Não de todas, claro. Mas, em grande parte das garotas na faixa etária pesquisada, nota-se esse risco de desaparecimento do pensamento crítico e dos embasamentos históricos. Elas mostram-se mais preocupadas com o bom gosto (ou sua ausência) de Ronaldo Fraga do que com o simbolismo da coleção apresentada, certamente porque passaram tanto tempo julgando as vestimentas de Miley Cyrus e Britney Spears que agora ficou difícil desenvolver um olhar mais aprofundado sobre a moda.
É necessária a aplicação de uma abordagem mais engajada e preocupada com a identidade da mulher, tão repleta de detalhes e decorrências do passado, que a tornam muito valiosa para não ser semeada na mente das adolescentes. São elas as mulheres do amanhã. E se cultivarmos superficialidade, corremos o risco de desperdiçar toda a luta exercida no século XX e todas as conquistas reais e significativas que tiraram a mulher de dentro de casa e a vestiram com um papel autêntico na sociedade, seja na forma de um avental na cozinha ou de uma lingerie em plena Times Square. Mães, donas de casa, trabalhadoras, esposas e filhas – são todas mulheres desde que se reconheceram assim. E a juventude é o momento derradeiro para a construção de uma personalidade inteligente, ativa e desacomodada. ▄

  

Ronaldo Fraga, nascido em Belo Horizonte quarenta e uns anos atrás, tornou-se estilista no susto. Nunca desejou sua carreira, não teve mãe costureira ou irmãs provando vestidos em casa e nunca brincou de boneca. Começou pelo simples fato de saber desenhar. Trezentos anos depois, continua ilustrando personagens para suas estórias: o que muitos chamam de moda.” Descrição de Ronaldo Fraga no blog do próprio estilista.



 
Ronaldo Fraga não põe a moda na vida. Põe a vida na moda. Ronaldo não cria roupas para pessoas sem cenário, sem lembranças, sem humor e sem historia. Um desfile dele é esperado com a mesma ansiedade com que se antecipa um espetáculo teatral.” Palavras da blogueira Virginia Moretti sobre o estilista.








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