Adolescência,
moda e identidade da mulher no contexto moderno
Por
Ariadne Selene, Marília Ferreira e Edmar Borges
Se tem uma coisa que ninguém gosta, é de uma verdade dolorosa. Ela
afeta nosso bem-estar, nosso humor e nossa qualidade de vida. Brinca
com nossas amizades, dança no seio de nossa família e, acima de
tudo, nos revela o que preferíamos ignorar. Constata-se, porém, uma
verdade arrebatadora e expressiva no contexto social da nossa era:
muitas adolescentes estão a um passo da bestialidade cultural e
política, justamente quando se acreditava que os jovens estavam tão
próximos do pensamento crítico.
Na geração do consumo, onde imperam os deuses Pressa e
Extravagância, mas também onde ganham força a tecnologia e os
debates sociais, o papel da moda se mostra cada vez mais edificante
na construção da identidade da mulher. Capitalismo e feminismo se
encontram em vertentes distintas, mas, ao mesmo tempo, interligadas.
O mundo fashion, graças à pluralidade dos novos tempos,
tende a se dinamizar. A coleção “Corpo Cru”, por exemplo, de
Ronaldo Fraga, coloca em cheque o uso do corpo feminino, suas causas
e suas intenções quando substitui modelos reais por um mecanismo de
roldanas. Mas será que as adolescentes de hoje, futuras agentes
sociais primárias, conseguem reconhecer a moda como elemento
constituinte de suas próprias identidades? Ou elas a enxergam apenas
como cores de esmalte e saltos Dior?
(Roldanas utilizadas no lugar de
modelos reais – “Corpo Cru”, de Ronaldo Fraga. 2002)
O legado da moda e a construção do corpo da mulher
Uma análise das edições da revista Vogue entre os anos de 60 e 90
indicou uma transformação significativa na abordagem da moda quando
aplicada na vida cotidiana das leitoras. Páginas que costumavam
estar recheadas de receitas gastronômicas passaram a estampar
imagens de mulheres poderosas e elegantes, o que gradualmente elevou
o papel da mulher na sociedade a um nível de relevância expressivo
– requinte tornou-se sinônimo de inteligência e capacidade de
comando. Outrora, elas eram obrigadas a cuidar dos filhos e a
acompanhar o marido como sinal de “respeito” (vulgo submissão),
mas então se libertaram dos paradigmas sociais que o século XX
prometeu quebrar e viraram a mesa. Os decotes, as saias, os cigarros,
os chapéus – cada peça que usavam representava uma parcela de sua
autonomia, cada vez mais motivada pelas revistas de moda, além de
coincidir com várias conquistas feministas por todo o mundo. Além
de ajudá-las com o bom gosto, portanto, as revistas tiveram papel
decisivo no incentivo á queda de tabus e ao debate de conflitos
sociais da época, muitos persistentes até hoje (como violência
doméstica, por exemplo, cuja existência a elegância não é capaz
de extinguir, ainda que exaustivamente exposta na mulher).
O que se viu, então, foi o surgimento de certa sensibilidade do
mundo fashion para com os problemas enfrentados pelas mulheres
diariamente. Subjugadas pela casta, ganharam valor com a construção
de uma nova identidade e passaram a pensar nos seus conflitos e nas
suas realidades de forma crítica, sem subordinação, mas com a
aceitação de um papel novo – o da mulher capaz, sensual e
moderna.
(Edições da Vogue de,
respectivamente, 1944, 1966 e 2008)
Com a propagação da imagem feminina, no entanto, a liberdade deu
uma escorregada. Os corpos poderosos e sensuais que pretendiam nutrir
de autoestima as mulheres passou a oprimi-las, e aquelas que não se
encaixavam no padrão das modelos sentiam-se aquém novamente. Sempre
aquém de algo. O corpo da mulher tornou-se imagem de exposição e
um elemento de uso comum.
O contexto da bestialidade
Muitas pesquisas mostram que os jovens têm lido menos, sejam
romances literários ou jornais do dia-a-dia. Eis aí uma verdade
suficientemente aterradora, pois a falta de leitura e informação
acarreta na formação de uma juventude sem senso crítico,
argumentos e opinião. Pessoas deslocadas do contexto social,
político e econômico do mundo, ou simplesmente de sua nação, não
são munidas de bagagem para alterar a realidade insatisfatória ou
apenas assimilá-la, o que gera uma população acomodada e,
constantemente, ignorante.
Mulheres de todo o mundo levaram quase um século inteiro para
chegaram onde estão hoje, e ainda falta muito. Imagine todo o
trabalho que elas tiveram, todas as suas diretrizes, suas lutas, suas
defesas e, principalmente, seus meios para conquistarem espaço na
sociedade, ao menos um espaço digno de respeito. Nomes como Olympe
de Gouges (revolucionária feminista francesa) e Anne Frank (judia
vítima do holocausto nazista de Hitler) marcaram a história como
símbolo da força da mulher, desde a renomada escritora, como no
caso de Olympe, até a mais jovem, como a menina Anne. E estamos
falando de tempos onde tudo era muito diferente. As mulheres que
batalhavam pela igualdade de direitos e pela construção de uma
identidade feminina sólida e respeitada não viviam na era da
informação, como as de hoje vivem (e muitas se utilizam disso a seu
favor).
No entanto, quando o acesso à comunicação se tornaria uma dádiva,
bestializou as jovens da modernidade e as trancafiou em redomas de
comodidade capitalista e cultural que revelam um quadro assustador do
país: grande parte das garotas entre 12 e 17 anos não são capazes
de assimilar os conflitos sociais ao redor delas nem de reconhecer a
contribuição da moda para a edificação de uma identidade justa da
mulher.
O que acontece?
Foi conduzida durante a semana uma apuração sobre o pensamento
crítico das adolescentes e os veículos e produtos que elas
eventualmente consomem. Ao visualizarem a coleção “Corpo Cru”
as jovens apresentaram, na maioria das vezes, reações inesperadas:
julgaram a roupa e deixaram completamente de lado o caráter
metafórico do desfile, propositalmente criado por Ronaldo Fraga como
uma forma de criticar o uso do corpo feminino, sempre subjugado pela
roupa. Elas se atentaram aos detalhes das peças e, especialmente, a
responder uma pergunta que não foi feita – “você usaria essa
roupa?”. O que estava sendo debatido não era a possibilidade de
uso das vestes, e sim o caráter político, social e cultural
impregnado na forma como foram exibidas, em máquinas no lugar de
corpos verdadeiros. Mas as entrevistadas não notaram que esse
caráter existia.
(Corpo Cru, 2002)
E isso não é culpa delas, apenas. Somos o que consumimos, e todas
as entrevistadas consumiam os mesmos produtos da mídia. Revistas e
portais da internet destinados a meninas adolescentes são campeões
do interesse delas. As páginas virtuais da Capricho, da TodaTeen e da Atrevida são suas prediletas. Sabendo disso,
fica muito mais fácil entender porque elas estão tão distantes do
engajamento sério e da compreensão da moda como um elemento muito
mais expressivo e artístico do que mero vestuário. Em todas as
páginas citadas, o mundo fashion se restringe absolutamente a
aparências e padrões, onde celebridades (geralmente internacionais)
são julgadas de acordo com o que vestem, e a abordagem de identidade
feminina e jovem se mostra besta e superficial. Tabus como virgindade
e submissão amorosa são discutidos, uma característica positiva
dos tempos modernos, mas outros permanecem intactos, como o de que a
garota deve se arrumar e se embelezar sempre que for sair. Existem
grandes contradições.
Além disso, as fotografias expostas nesses sites são repletas de
meninas magras e bonitas, possivelmente inspiradas nas artistas
norte-americanas da cultura pop, e sexo, apesar de ser um assunto
livre e bem conduzido, é debatido com futilidade, como quando
respondem à pergunta “sexo oral é sexo?”. É claro que esses
elementos vêm para alimentar o anseio das adolescentes, que
realmente têm muitas dúvidas sobre sexo, mas o que se vê é um
local onde poderia existir um fórum de questões mais aprofundadas,
onde suas raízes históricas fossem apresentadas, e, no entanto, há
apenas uma lista de perguntas com respostas enfeitadas e
superficiais.
Essa predominância de temas e conteúdos facilmente interpretados
ameaça a capacidade das adolescentes de percepção da
subjetividade. Não de todas, claro. Mas, em grande parte das garotas
na faixa etária pesquisada, nota-se esse risco de desaparecimento do
pensamento crítico e dos embasamentos históricos. Elas mostram-se
mais preocupadas com o bom gosto (ou sua ausência) de Ronaldo Fraga
do que com o simbolismo da coleção apresentada, certamente porque
passaram tanto tempo julgando as vestimentas de Miley Cyrus e Britney
Spears que agora ficou difícil desenvolver um olhar mais aprofundado
sobre a moda.
É necessária a aplicação de uma abordagem mais engajada e
preocupada com a identidade da mulher, tão repleta de detalhes e
decorrências do passado, que a tornam muito valiosa para não ser
semeada na mente das adolescentes. São elas as mulheres do amanhã.
E se cultivarmos superficialidade, corremos o risco de desperdiçar
toda a luta exercida no século XX e todas as conquistas reais e
significativas que tiraram a mulher de dentro de casa e a vestiram
com um papel autêntico na sociedade, seja na forma de um avental na
cozinha ou de uma lingerie em plena Times Square. Mães, donas de
casa, trabalhadoras, esposas e filhas – são todas mulheres desde
que se reconheceram assim. E a juventude é o momento derradeiro para
a construção de uma personalidade inteligente, ativa e
desacomodada. ▄
“Ronaldo
Fraga, nascido em Belo Horizonte quarenta e uns anos atrás,
tornou-se estilista no susto. Nunca desejou sua carreira, não teve
mãe costureira ou irmãs provando vestidos em casa e nunca brincou
de boneca. Começou pelo simples fato de saber desenhar. Trezentos
anos depois, continua ilustrando personagens para suas estórias: o
que muitos chamam de moda.”
Descrição de Ronaldo Fraga no blog do
próprio estilista.
“Ronaldo
Fraga não põe a moda na vida. Põe a vida na moda. Ronaldo não
cria roupas para pessoas sem cenário, sem lembranças, sem humor e
sem historia. Um desfile dele é esperado com a mesma ansiedade com
que se antecipa um espetáculo teatral.”
Palavras da blogueira Virginia Moretti
sobre o estilista.
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