terça-feira, 27 de agosto de 2013

Carnes expostas: o corpo cru e despido

por Douglas Gomes, Gabriel Campbell e Lara Pechir

Inspirado pela relação direta e sem intermediações entre corpo e roupa, Ronaldo Fraga em sua coleção de verão 2002, apresenta o corpo humano em sua forma mais literal: desvestido e descarnado. Ou melhor, vestido pela sua própria imagem.

Em mais um desfile-performance do estilista mineiro, modelos de carne e osso foram substituídas por bonecos vestidos que circulavam na passarela pendurados num carrossel, um verdadeiro “antidesfile” segundo caracterizou a mídia na época. O clima de açougue de carne humana apresentava-se não só na cenografia, mas desde o convite do desfile (uma bandeja de isopor com uma foto de um filé mignon), passando pelas estampas de carne moída crua, pele humana e seios, tudo isso culminando numa reflexão onde o corpo abandona sua veste e se apresenta como própria indumentária.

Manequins "caminhando" por  roldanas
Expondo sua sensibilidade em dialogar sobre o ser humano e seu posicionamento no mundo, o estilista traduz em um dos mais tradicionais espetáculos da moda a insegurança do “eu” em relação ao todo, refletindo de certa forma o sentimento mundial pós-atentados terroristas aos Estados Unidos, o famoso dia “11 de setembro”, que impactou relações entre nações e transformou posicionamentos que refletiram em vidas ao redor do planeta. E como todo momento de insegurança gerado pela guerra, a verve criativa se manifesta. Os cortes nos tecidos, representando fissuras na pele que expõe o vermelho-sangue comum a todo humano, nos remete a igualdade. As nervuras e costuras expostas nos tecidos remetem a nervos, ao sentimento que se manifesta fisicamente.

"Corpo em movimento"
Em busca de saber qual tipo de opinião a coleção desperta em mulheres de diversas faixas etárias, mesmo após 11 anos do lançamento da coleção, nossas entrevistadas demonstraram identificação com o tema e apreço pelo trabalho do estilista. Marina Morgan, 23, graduanda em Jornalismo, quando perguntada sobre o que achou das peças, afirma que Ronaldo Fraga tem uma sensibilidade que o destaca dos demais estilistas, pois “essas roupas são mais 'comuns' ao modo de vestir dos brasileiros” e disse que além de ter gostado das peças em geral, incluiria perfeitamente em seu guarda roupa. “Os tons 'crus' são diferentes e sóbrios, que é uma coisa que muito me agrada.” Para Alice Calzolari, 21, estudante e customizadora de roupas, além de afirmar que usaria as peças, diz que “as estampas não ficaram 'nojentas', mostraram partes do corpo de um ângulo completamente usável e interessante.” Ela aponta que a representação da coleção sobre o corpo foi “algo inovador, diferente. Nada grotesco, como pensamos ao ouvir o que foi usado para tal.”, conclui.

Roupa representando o corpo
Anna Paula, 24, fotógrafa, interpreta a proposta como ousada, não sendo objeto de composição da sua forma de se vestir. Segundo ela, a coleção lhe causa estranhamento e a fez refletir sobre o uso de pele de animais na moda. “A ideia que veio em mente quando vi as peças não foi a melhor. Tudo bem que as partes do corpo foram expostas em imagens, mas me fez pensar nas peças feitas com couro de animais (entre outros materiais).”, explica. Anna Paula aprofunda sua reflexão, direcionando sua análise ao futuro do mercado da moda. “Ao olhar as peças eu me questionei: 'assim como os animais, vamos ser usados pra isso? Começou com imagens, mas será que fica só nisso ou vão ousar mais?", questiona a fotografa.

Fernanda Tropia, 40, empresária, vê as peças ainda como contemporâneas e esse caráter as torna “completamente acessíveis ao uso no dia a dia”. Segundo ela, a discussão levantada pelo estilista, pelo qual admira a forma com que lida com questões polêmicas em suas coleções, lhe fez “refletir a real necessidade de modelos magérrimas em desfiles, além da necessidade de entender que somos todos iguais (todos temos vísceras, peito, bunda)”.

Questionamento de padrões
Reforçando essa igualdade representada, o último bloco do desfile, ao som de um tradicional e dramático tango argentino, a estrutura cenográfica travou. Roldanas não iam nem pra trás, nem pra frente. Instantes de silêncio. Então surgem camareiras, costureiras, produtores e demais membros da equipe da marca que entraram em cena para conduzir os bonecos, manualmente. Foi como um recado não-proposital, da roupa para o corpo, reafirmando a interdependência indissociável entre um e outro. O corpo que leva a roupa e a roupa que representa o corpo. Seja na passarela de uma semana de moda, na cabeça de um estilista, na interpretação de consumidoras e admiradoras, Ronaldo Fraga mais uma vez, brilhantemente, conseguiu por meio da linguagem de moda, questionar padrões. Ainda que isso seja um paradigma da própria existência desse universo, do qual ele é mais um ator.



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